Fundadora do projeto Mães às Claras
O paradoxo da maternidade moderna: A evolução das oportunidades que gradualmente vão sendo conquistadas pelas mães contradiz as expectativas tradicionais que ainda persistem sobre o papel da mãe cuidadora, criando uma tensão complexa entre as nossas identidades passadas e presentes.
Conteúdo
- 1 A cultura da parentalidade intensiva
- 2 Redefinindo a maternidade no século XXI
- 3 Parentalidade intensiva: será que veio para ficar?
- 4 A parentalidade intensiva e o burnout das mães
- 5 Será a parentalidade intensiva uma questão global?
- 6 A pressão para ser uma “boa mãe”
- 7 O paradoxo da maternidade moderna
A cultura da parentalidade intensiva
No ritmo frenético da vida moderna, as expectativas sobre os pais, especialmente sobre as mães, atingiram níveis nunca antes vistos. Diariamente vemos exemplos da pressão colocada pela sociedade, e às vezes alimentada pelas próprias mães, que sistematicamente se entrelaçam numa teia de preocupações, tarefas e esforço contínuo e permanente para serem “boas mães”, enquanto tentam em simultâneo ser profissionais de excelência e manter uma carreira com ambição e objetivos bem definidos.
Essa pressão é em grande parte alimentada pela ideia ocidental assente sobre o conceito de “parentalidade intensiva”, que pode ser entendida como “uma cultura parental que pressupõe que o envolvimento parental intensivo na vida das crianças é necessário para maximizar o desenvolvimento físico, cognitivo e social da criança” (Hays, 1996, p. 9; Lee et al., 2014, p. 26).-27; Schiffrin, Godfrey, Liss e Erchull, 2014).
Por outras palavras, nas últimas décadas as sociedades ocidentais têm vivido de forma transversal sob uma cultura parental centralizada na criança, em que os pais se tornam superprotetores e dedicam todo o seu tempo livre aos seus filhos, tornando a parentalidade uma tarefa emocionalmente desgastante, que consome todo o tempo e energia disponíveis dos pais, sendo idealmente realizada pelas mulheres, consideradas as “especialistas em cuidados”. Essa crença elevou o padrão do que significa ser uma “boa mãe” nos dias de hoje.
No livro “A Tirania do Mérito”, Michael J. Sandel, professor de Filosofia, chama a atenção para aquilo que denomina como o fenómeno da proliferação dos chamados “pais-helicóptero”, caracterizados por “uma abordagem demasiado intensiva em termos de tempo e controladora da educação dos filhos”. A emergência dos “pais-helicóptero” tem coincidido, segundo este autor, com as décadas em que a competição meritocrática se tornou mais intensa, durante as quais “a necessidade de preparar os jovens para o sucesso académico passou a ser encarada como uma responsabilidade parental de suma importância”. Como consequência, “ficámos tão obcecados com o sucesso dos nossos filhos que a parentalidade se tornou uma espécie de desenvolvimento de produtos.”
Espera-se que os pais, principalmente as mães, dediquem cada parte de si – tempo, energia, recursos – aos filhos, muitas vezes conciliando isso com carreiras profissionais e responsabilidades domésticas. Essa realidade deixa muitas mães sem espaço para respirar, tal a pressão e o medo de falhar na função mais importante do mundo: a parentalidade.
Segundo aponta Isobel Benesch, fundadora do Atlas of Motherhood, num artigo publicado no portal Motherly, a parentalidade moderna pode ser desafiadora na melhor das hipóteses e, na pior, simplesmente insustentável.
Mas será que os pais de hoje enfrentam desafios maiores do que as gerações anteriores?
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Redefinindo a maternidade no século XXI
De acordo com um estudo de 2023 do Pew Research Center, sobre a parentalidade na América, 70% das pessoas acreditam que ser mãe hoje é mais exigente do que era há apenas algumas décadas. Os números mostram que 60% partilham o mesmo sentimento em relação à paternidade. O investimento de tempo e dinheiro nos filhos disparou em comparação com as gerações anteriores, tendo ainda cerca de 40% dos pais confessado que a parentalidade é um trabalho cansativo e gerador de stress.
Na sua essência, a parentalidade sofreu uma profunda transformação nas últimas décadas. Conforme descrito no livro “Pay Up: The Future of Women and Work (and Why It’s Different Than You Think)”, de Reshma Saujani, o Center for American Progress relata que, em 1960, apenas 20% das mães trabalhavam; atualmente esse valor ronda os 70%.
Esta percentagem está também alinhada com a realidade europeia. De acordo com dados do Eurostat, publicados a 9 de agosto de 2021, 72% das mulheres europeias, com filhos, com idades entre os 25 e os 54 anos, trabalhava. Portugal neste particular encontra-se acima da média europeia, já que, segundo a mesma fonte, a percentagem de mulheres que são mães e têm trabalho remunerado é de 83%.
No entanto, apesar de mais mulheres terem atualmente funções de trabalho remunerado, maioritariamente em full-time, existem estudos que documentam um aumento substancial no tempo que mães e pais passam com os filhos desde a década de 1960. Os pais dos países desenvolvidos de todo o mundo estão a dedicar mais tempo aos seus filhos, de acordo com um estudo de 2016, realizado por académicos norte-americanos e italianos.
Ao estudarem os pais em 11 países desenvolvidos e ao compararem os resultados com os dados de 1965, verificaram que as mães dedicavam, em média, mais uma hora por dia à educação dos filhos, enquanto o tempo que os pais passavam com os filhos aumentou de apenas 16 minutos para 59 minutos em 2012. Este aumento verificou-se para os pais de todas as origens sociais, embora os pais com maior escolaridade tenham dedicado mais tempo aos cuidados dos filhos. Uma das autoras do relatório, Judith Treas, disse que o tempo passado com as crianças era “considerado crítico para resultados cognitivos, comportamentais e académicos positivos”.
Parentalidade intensiva: será que veio para ficar?
De acordo com Isobel Benesch, no mesmo artigo publicado no portal Motherly, este fenómeno conhecido como parentalidade intensiva emergiu como um pano de fundo cultural definidor da maternidade moderna, que transcende as fronteiras de raça e classe, exigindo um nível sem precedentes de envolvimento ativo.
Patrick Ishizuka, professor de sociologia da Universidade de Washington em St. Louis, que estuda a parentalidade intensiva, descreve-a como o modelo cultural dominante de parentalidade nos EUA hoje.
Se isto era verdade nos EUA, na Europa a parentalidade era tradicionalmente mais descontraída, mas as coisas também têm vindo a mudar por aqui. De acordo com o artigo “American parenting styles sweep Europe”, de 2020, mais pais estão a adotar o tipo de estilo parental intensivo comum nos EUA.
Segundo Frederick de Moll, investigador alemão da Universidade do Luxemburgo, “antigamente, o papel dos pais seria garantir que os filhos estavam bem fisicamente, que se estavam a desenvolver bem mentalmente, e a parte da aprendizagem, a parte educativa seria a principal tarefa das escolas”, afirma. Mas os pais estão agora mais envolvidos na aprendizagem dos seus filhos e “tentam interagir mais com os professores”.
Frederick de Moll acredita que o aumento da desigualdade, incluindo na Europa, faz com que os pais sintam que precisam de ajudar a impulsionar a educação dos seus filhos, uma opinião partilhada por Matthias Doepke, investigador que vive nos EUA e co-autor do livro “Love, Money, and Parenting: How Economics Explains the Way We Raise Our Kids”. “Se a desigualdade é demasiado elevada, isso significa que, do ponto de vista dos pais, está a tornar-se muito importante que as crianças não sejam deixadas para trás. E assim os pais assumirão um estilo parental mais intenso e mais orientado para o sucesso”, explica Doepke.
Enraizada na crença da parentalidade intensiva está a expectativa de que as mães, em particular, devem assegurar o bom desenvolvimento físico, social, emocional e cognitivo dos seus filhos, mesmo que isso as leve ao ponto de exaustão e burnout parental (Villalobos, 2014; Wall, 2018).
Um estudo de 2012, “Insight into the Parenthood Paradox: Mental Health Outcomes of Intensive Mothering”, realizado por três académicos norte-americanos, mostrou que quanto mais intensivo é o estilo parental, mais deprimida e ansiosa é a mãe.
A parentalidade intensiva e o burnout das mães
Não é surpreendente, então, que as taxas de burnout e depressão das mães estejam a aumentar. Há apenas algumas décadas atrás, fazia parte do papel tradicional da mãe ficar em casa e raramente se envolver em trabalho remunerado fora de casa (Hays, 1996). Apesar de hoje em dia a realidade ser diferente, com as mulheres a assumirem carreiras e funções profissionais a tempo inteiro, a expectativa social sobre o papel tradicional da mulher e mãe, enquanto cuidadora, continua a impactar as mães de hoje (Hays, 1996).
“Para muitas mulheres, não é o processo de se tornar mãe em si que é a coisa mais difícil – não é a gravidez, os meses de crescimento de uma nova forma de vida na sua barriga, não é o trabalho de parto e o parto, não são as noites sem dormir, não é a amamentação [embora sim, todas essas coisas podem ser muito exigentes] – mas sim navegar pela dinâmica de um mundo económico e social que não foi desenhado com elas em mente”
PhD Charity M. Hoffman
Essas normas sociais do que significa ser uma “boa mãe” são frequentemente transmitidas através dos media e de publicações nas redes sociais (Chae, 2015), comunicando padrões para a mãe “ideal” que refletem a maternidade intensiva.
Na era da “mãe do Instagram”, onde a parentalidade é fortemente influenciada pelas redes sociais, é evidente que aumentamos as expectativas que colocamos sobre as mães. “Nas sociedades ocidentais, onde as mulheres milleninals são mais instruídas do que qualquer geração anterior, elas estão a experienciar taxas alarmantes de burnout enquanto tentam conciliar as exigências da força de trabalho remunerada e as responsabilidades de uma mãe que fica em casa”, explica Andrea Bombino, coach de carreira para mulheres.
“Este ato de equilíbrio não só é desgastante, como também está a levar as mulheres a questionar o seu compromisso com a sua carreira profissional, bem como a questionar colocar a sua família acima de tudo, incluindo colocá-las acima da sua própria saúde e bem-estar”, aponta Andrea Bombino.
Estudos recentes “Feeling Pressure to Be a Perfect Mother Relates to Parental Burnout and Career Ambitions” indicam que essa pressão crescente pela perfeição na maternidade tem sido positivamente associada ao burnout e à exaustão dos pais.
“Para muitas mulheres, não é o processo de se tornar mãe em si que é a coisa mais difícil – não é a gravidez, os meses de crescimento de uma nova forma de vida na sua barriga, não é o trabalho de parto e o parto, não são as noites sem dormir, não é a amamentação [embora sim, todas essas coisas podem ser muito exigentes] – mas sim navegar pela dinâmica de um mundo económico e social que não foi desenhado com elas em mente”, escreve a candidata a PhD Charity M. Hoffman numa dissertação.
Será a parentalidade intensiva uma questão global?
Globalmente, existem várias diferenças práticas que significam que as nossas vidas como pais agora são extremamente diferentes das gerações anteriores, desde a forma como acedemos às redes de apoio, aos desafios financeiros à medida que o custo de vida aumenta, à conciliação entre trabalho e família, com mais mulheres na força de trabalho do que nunca, à proliferação de informações e conselhos de especialistas, à comparação nas redes sociais, à forma como conduzimos as amizades até à quantidade de conhecimento que temos sobre parentalidade.
as mães nas sociedades ocidentais estão neste momento a navegar no mar agitado da maternidade intensiva, onde a expectativa de dedicar muito tempo, energia e esforço aos seus filhos muitas vezes tem um custo para o seu próprio bem-estar e saúde mental.
Durante o último meio século, houve um progresso significativo na participação das mulheres na força de trabalho em todos os países ocidentais. No entanto, essa transformação não se refletiu no domínio das responsabilidades domésticas e familiares.
Apesar da mudança do modelo tradicional do homem provedor para famílias com dois provedores, as mulheres continuam a assumir a maior parte do trabalho doméstico não remunerado. Tal como mencionado no Livro Branco do Projeto MERIT, e a título de exemplo, na UE27, as mulheres dedicam em média, relativamente aos homens, menos 6 horas ao trabalho pago e mais 13 horas ao trabalho não pago, trabalhando, assim, mais 7 horas por semana.
Em Portugal, esta diferença é ainda mais acentuada: elas trabalham mais 10 horas por semana, dedicando, em média, relativamente a eles, menos duas horas ao trabalho pago e mais 12 horas ao trabalho não pago (Eurofound, 2021).
Conclusão idêntica pode ser retirada do Relatório Women @ Work 2024: A Global Outlook, da Deloitte, que indica que, apesar de haver mais mulheres globalmente na força de trabalho hoje, as mulheres em todo o mundo continuam a ser as principais responsáveis pelas tarefas domésticas e de cuidado.
Nas sociedades ocidentais de hoje, as mães dedicam mais tempo ao cuidado dos filhos (Bianchi, Robinson e Milkie, 2006; Dotti Sani e Treas, 2016), envolvem-se em períodos mais prolongados de amamentação (Baker, 2016; Faircloth, 2009; Maralani e Stabler, 2018) e lidam com maiores desafios emocionais na criação dos filhos (Ennis, 2014; Liss et al., 2013; Sutherland, 2010) do que nunca na história recente.
Eve Rodksy, autora do livro “Fair Play”, bestseller do New York Times, mesmo tarefas que podem parecer semelhantes às que as mães realizavam nos anos 60 e 70 tornaram-se notavelmente mais exigentes.
Podemos pensar em vários exemplos práticos e objetivos, estabelecendo um paralelismo entre essas décadas e a realidade dos dias de hoje.
Pensemos por exemplo que, nos anos 70, por diversas razões, as fórmulas patenteadas eram extremamente populares nos Estados Unidos e as taxas de amamentação entraram em queda livre.
Atualmente (e ainda bem que assim é!) temos assistido a uma tendência crescente pela opção de amamentação, seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde, quer em termos da percentagem de mulheres que optam pela amamentação, quer em termos do período temporal durante o qual estão dispostas a fazê-lo. Apesar de todos os benefícios que esta evolução traz consigo, implica também um maior desgaste por parte das mães, na medida em que se trata de uma tarefa que só pode ser feita exclusivamente pela mãe (a menos claro que optem por fazer extração de leite materno).
Um outro exemplo é a preparação e planeamento das refeições. Há umas décadas, o jantar “qualquer coisa” era uma prática muito habitual da sociedade. Hoje em dia, com toda a informação e conhecimento que é difundido, e com a própria sensibilização que é feita sobre o problema da obesidade infantil, do excesso do sal e dos açúcares na infância, dos produtos processados, etc. tem-se verificado uma maior dedicação e esforço por parte das mães, para garantir que fornecem refeições caseiras, nutritivas, saudáveis e diversificadas, sentindo-se culpadas se não o fizerem. Já não falando das próprias exigências dos horários escolares e atividades extracurriculares, que adicionam ainda mais complexidade às refeições em família.
“Tornámos tudo muito mais difícil para os pais”, refere Rodsky.
As rotinas e tarefas quotidianas fazem parte das responsabilidades domésticas há gerações. No entanto, há agora muito mais trabalho e complexidade na concepção, planeamento e execução destas tarefas diárias.
A pressão para ser uma “boa mãe”
Numa mudança em relação às normas históricas, os pais europeus estão a adotar cada vez mais este estilo de parentalidade intensiva, com a pressão de ser uma “boa mãe” agora a ser o padrão das sociedades ocidentais.
Mesmo em sociedades com sistemas de bem-estar social robustos, como é o caso dos países nórdicos, a parentalidade intensiva está a ganhar terreno.
Neste mesmo artigo publicado na Motherly, é partilhado o testemunho de Asabea, uma parteira e mãe residente em Estocolmo, no qual ela afirma que, embora ambas as gerações tenham navegado pelas exigências da maternidade e carreira, há uma mudança significativa nas expectativas colocadas sobre as mães de hoje na Suécia.
“Espera-se que sejamos tudo: mulheres focadas na carreira, motivadas, mães atentas que respeitam os sentimentos dos nossos filhos, tudo isso enquanto mantemos a nossa própria identidade separada da dos nossos filhos. É difícil tentar ser tudo”, diz Asabea.
O paradoxo da maternidade moderna
Há um jogo de equilíbrio e tensão complexos que a maioria das mães modernas enfrenta hoje em dia nos países ocidentais. A tendência para a parentalidade intensiva, em comparação com as expectativas tradicionais, cria um desafio distinto para as mães de hoje, com o qual as gerações anteriores não se debateram.
Apesar dos avanços nas políticas e opções de cuidados infantis em alguns países (mesmo naqueles com as melhores políticas de apoio à parentalidade), as mães nas sociedades ocidentais estão neste momento a navegar no mar agitado da maternidade intensiva, onde a expectativa de dedicar muito tempo, energia e esforço aos seus filhos muitas vezes tem um custo para o seu próprio bem-estar e saúde mental.
Para Isobel Benesch, isto implica conciliar as responsabilidades do trabalho com as responsabilidades das tarefas domésticas, tudo isto enquanto se esforçam por incorporar a imagem idealizada de uma “boa mãe” que é perpetuada através dos media e das redes sociais. A evolução das oportunidades que gradualmente vão sendo conquistadas pelas mães contradiz as expectativas tradicionais que ainda persistem, criando uma tensão complexa entre as nossas identidades passadas e presentes.
Fundadora do projeto Mães às Claras