A insanidade da maternidade na sociedade atual: o equilíbrio impossível entre mãe/humana

Flávia de Carvalho
Psicóloga e psicanalista |  + posts
  • Psicóloga e psicanalista
  • Co-fundadora do Lalangue Institute na Austrália
  • Co-criadora do podcast “DesConstruir”

Como pode uma mulher dar conta das exigências sociais que lhe são impostas, conciliando o papel de mãe com o seu lugar no mundo do trabalho e com os seus próprios desejos, que vão para além da maternidade?

O equilíbrio impossível entre ser mãe e ser humana

A maternidade moderna é um território complexo, onde as expectativas sociais entram em conflito com a realidade multifacetada da vida das mulheres e muitas vezes resulta em sentimentos de inadequação e culpa.

Num mundo que idealiza a maternidade como o auge da feminidade, impõe-se a pressão para a mulher ser mãe. Segue-se a pressão de ser uma mãe ideal aos olhos da sociedade, atirando as mulheres para uma competição insana e sem possibilidade de sucesso. Esta pressão desafia até mesmo as noções mais fundamentais de autonomia e liberdade feminina.

Desde o momento em que o teste de gravidez dá positivo, acentua-se a pressão para corresponder à imagem da mãe ideal. Espera-se que a mulher viva a gestação como uma experiência mágica, plena de felicidade e realização. Cada pontapé do bebé deve ser celebrado, cada mudança no corpo aceite com gratidão. No entanto, a realidade é bem mais ambígua.

A gestação pode despertar emoções contraditórias: alegria e medo, desejo e repulsa, ligação e estranhamento. O corpo transforma-se e torna-se um lugar de passagem para outra vida. Esta mudança pode gerar um profundo desconforto, uma sensação de perda de si mesma.

Mas pouco se fala sobre esta ambivalência. Expressar cansaço, dúvidas, distanciamento emocional ou até mesmo uma certa tristeza é tabu e ai da ingrata que ousar demonstrar isso!

Quando o bebé nasce, as exigências aumentam. Agora, a mulher deve ser simultaneamente uma especialista em cuidados neonatais e uma profissional de sucesso. Precisa de cuidar do bebé com a destreza de uma enfermeira pediátrica e organizar a vida familiar como uma gestora eficiente.

Se der demasiado colo, pode ser acusada de criar uma criança dependente. Se tentar manter a sua vida profissional e pessoal, pode ser julgada por não se dedicar o suficiente ao filho. Para além disso, espera-se que esteja sempre feliz, como se a maternidade fosse um estado de êxtase permanente. Mas, paradoxalmente, se demonstrar felicidade em excesso, pode ser vista como alguém que se anulou completamente no papel de mãe. 

Como pode uma mulher dar conta das exigências sociais que lhe são impostas, conciliando o papel de mãe com o seu lugar no mundo do trabalho e com os seus próprios desejos, que vão para além da maternidade? Apesar da carga de cuidados infantis ainda ser imposta de forma desproporcional sobre as mães, a responsabilidade pela criação dos filhos é, na verdade, um esforço coletivo que envolve parceiros, família e comunidade.

Ler também: Carga mental das mães: o pesado bastão da CEO da casa


Maternidade e instinto: um mito a questionar

Ser uma “boa mãe” aos olhos da sociedade atual, não é apenas difícil, é  uma missão impossível.

A pressão constante gera sentimentos de culpa e inadequação, fazendo com que muitas mulheres se sintam sempre em falta, como se nunca estivessem à altura do papel que lhes foi imposto. Para além dos desafios práticos, a maternidade é também um processo psíquico intenso. 

Ainda existe uma ideologia baseada no instinto materno e de que uma mulher é acima de tudo uma mãe. Contudo a ideia de “instinto materno” tem sido cada vez mais questionada à luz de práticas históricas e contemporâneas que desafiam a noção de que as mulheres são naturalmente predestinadas à maternidade. A maternidade não é apenas uma questão de instinto. Se assim fosse, não haveriam tantas dúvidas, ansiedades e contradições. 

Ao contrário de outros mamíferos, cujo comportamento maternal se manifesta de forma instintiva e uniforme, os seres humanos precisam de aprender e desenvolver competências para isso. Isto mostra que nem tudo acontece apenas por instinto.

Com o tempo e a evolução das espécies, o ser humano perdeu parte dos seus automatismos e deixou de depender exclusivamente deles. Isto não significa que os instintos desapareceram por completo, mas que deixaram de ser predominantes.

O que nos diferencia é o facto de sermos atravessados pela linguagem e pela cultura o que influencia a forma como vivemos as nossas relações. A linguagem introduz a possibilidade de equívoco e interpretação na comunicação, ao contrário da precisão instintiva que orienta o comportamento de outros mamíferos.

Por isso, a maternidade não é algo inato, uma essência, mas sim algo que se constrói como uma experiência. Ela forma-se a partir do desejo de cada mulher, das referências que cada uma tem sobre o que significa cuidar, das suas experiências e da sua história pessoal e estende-se na experiência de descoberta com o seu bebé e dos outros ao seu redor. Esse processo nem sempre é linear, pode envolver conflitos, adaptações, sofrimento e até resistência. Pode ser uma experiência maravilhosa para muitas e extremamente desafiadora para tantas outras. O que é certo é que é uma experiência única.

Ler também: O paradigma da maternidade moderna


O peso da culpa e a possibilidade do “suficientemente bom”

Diante de tantas exigências, será possível viver a maternidade sem uma culpa excessiva? É tempo de repensar o que significa ser uma “boa mãe” em vez de persistirmos um ideal inatingível que traz adoecimento.

Talvez parte da resposta esteja em aceitar que falhar faz parte do processo do ser humano, aliás não há escapatória possível, é humanamente impossível responder a todas as exigências, necessidades e pedidos dos outros. Falhar é uma condição humana para estar na vida. 

Donald Winnicott, um reputado pediatra e psicanalista britânico, já reconheceu a importância do falhar materno para a formação do psiquismo do bebé e para o desenvolvimento da sua autonomia, assim como para a construção de uma relação saudável mãe-bebé. Como resultado dos seus estudos, experiência clínica e pesquisas, propôs a noção importantíssima, da mãe “suficientemente boa”, aquela que faz o suficiente para criar um ambiente suficientemente acolhedor, seguro e afetivo, que se esforça para não deixar a criança desamparada, mas que não é perfeita, que também erra, falta, falha e tem outros desejos para além da maternidade.

Ao contrário do que se possa pensar, a falha materna é essencial para o desenvolvimento da autonomia da criança. Se a mãe nunca falhasse, a criança não teria espaço para aprender a lidar com frustrações e desenvolver recursos próprios para enfrentar o mundo. Importante lembrar que falhar é uma coisa diferente de deixar a criança num desamparo. 

Talvez o caminho para ser uma “boa mãe” passe justamente por aceitar que não há perfeição possível.

Que tal apostarmos em sermos apenas suficientemente boas? Isso, por si só, já é um enorme desafio e, talvez, a maior prova de amor que podemos oferecer aos nossos filhos e a nós mesmas.

Flávia de Carvalho
Psicóloga e psicanalista |  + posts
  • Psicóloga e psicanalista
  • Co-fundadora do Lalangue Institute na Austrália
  • Co-criadora do podcast “DesConstruir”