
João Pinho
Pai cansado | Co-host do podcast de parentalidade "Ninguém Disse Que Era Fácil" | Escreve sobre parentalidade no joaotrapalhao.pt
Se antes me imaginava num caminho muito orientado pela minha carreira, vejo agora, cada vez mais, uma carreira orientada pelo que mais valorizo na minha vida: a minha família, os meus amigos e o meu sono.
Acordei às três da manhã para dar um biberão e não consegui voltar a adormecer.
Primeiro, porque o meu sono é assim, mesquinho. Depois, porque quando estava quase, quase a adormecer, umas duas horas depois de ter andado às voltas na cama e pela casa, a minha filha, já completamente desperta, veio pedir-me para ver a Porquinha Peppa.
Acho que um dos principais benefícios dos autocolantes “Bebé a Bordo” no carro — que não tenho — é o facto de informar as outras pessoas de que vai ali um adulto fragilizado, que provavelmente dormiu mal e que merece toda a empatia que o resto do mundo tiver para lhe oferecer.
Mas a verdade desta vida cruel é que os lugares de estacionamento reservados dos shoppings só nos servem quando temos a criança, efetivamente, a bordo. Não há privilégios para os pais exaustos, a menos que tragam consigo a prova do crime.
Devia haver um sinal ou uma t-shirt especial que pudéssemos usar, que assinalasse ao resto do mundo: está aqui alguém que precisa de paciência e que o deixem passar à frente. Só porque sim. Sem perguntas.
Ler também: Ninguém nos ensina a ser Mãe: “Se eu soubesse o que sei hoje”
Voltando ao dia que começou às três da manhã, agora que são dez e já cheguei ao escritório, não consigo evitar a ideia de que deveria haver alguma disciplina na escola que nos preparasse para a tareia que é a exigência de nos mantermos produtivos nestas circunstâncias.
Se há uns minutos estava a tentar lembrar-me como é que se trancava a porta do carro, como é que é suposto que agora seja capaz de executar processos mentais mais sofisticados do que jogar ao jogo do galo?
Se, por um lado, é essencial não me esquecer que não devo tomar grandes decisões de vida quando mergulhado em contextos que, ainda que extremos, são pontuais, a parentalidade convida, inevitavelmente, à reflexão: o que é que eu quero da minha existência? O que eu estou a fazer está a levar-me para onde desejo ir? O que é que, de facto, importa? A privação de sono é um terreno fértil para a filosofia.
Confesso que o cansaço e a parentalidade, passe a redundância, me retiraram alguma ambição profissional imediata. Ou melhor, recentraram o foco dessa aspiração. Se antes me imaginava num caminho muito orientado pela minha carreira, vejo agora, cada vez mais, uma carreira orientada pelo que mais valorizo na minha vida: a minha família, os meus amigos e o meu sono.
O meu objetivo, que já foi o objetivo standard de muita gente — estudar, trabalhar, aprender, subir na hierarquia, eventualmente lançar o novo Facebook, jogar golfe a meio da semana e por aí fora — agora é poder ir buscar as minhas filhas o mais cedo possível, à melhor escola possível.
Não deixo, claro, de sentir também que esta revisão na minha ambição pode ser passageira e não quero tomar decisões agora que me venha a arrepender no médio/longo prazo.
Porque, no fim do dia, quando esta fase — em que o que eu mais antecipo é ir com a minha família ao supermercado preparar o jantar que vamos fazer juntos enquanto ouvimos música na cozinha — passar, e a vida, inevitavelmente, vier exigir as filhas que me emprestou, estarei aqui eu — menos cansado, igualmente curioso e com vontade de continuar a desenvolver-me.
Entre a formiga e a cigarra, existem as mães e pais exaustos que precisam de uma pausa e de um bocadinho de música, mas que não se podem esquecer que o futuro vem aí para todos.
Artigo originalmente publicado a 28 de fevereiro de 2025, no blog João Trapalhão.

João Pinho
Pai cansado | Co-host do podcast de parentalidade "Ninguém Disse Que Era Fácil" | Escreve sobre parentalidade no joaotrapalhao.pt